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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

SÓNIA SULTUANE



Penso despertar em mim belezas ocultas


Tenho em mim esta garra
que me transforma
nessas mulheres de vários karmas
mulher agreste, selvagem
mulher luz, mulher poente
mulher confusa, mulher vidente
fico desperta quando descubro
que já vivi em outros mundos
com belezas ocultas de deusa, peregrina, supérflua, feiticeira,
todas guardadas nas profundezas do meu sangue,
da minha alma velha, mas de menina ainda contente.

Biografia  AQUI

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

MARIA MANUELA MARGARIDO







Memória da Ilha do Príncipe


Mãe, tu pegavas charroco
nas águas das ribeiras
a caminho da praia.
Teus cabelos eram lemba-lembas
agora distantes e saudosas,
mas teu rosto escuro
desce sobre mim.
Teu rosto, liliácea
irrompendo entre o cacau,
perfumando com a sua sombra
o instante em que te descubro
no fundo das bocas graves.
Tua mão cor-de-laranja
oscila no céu de zinco
e fixa a saudade
com uns grandes olhos taciturnos.

(No sonho do Pico as mangas percorrem a órbita lenta
das orações dos ocás e todas as feiticeiras desertam
a caminho do mal, entre a doçura das palmas).

Na varanda de marapião
os veios da madeira guardam
a marca dos teus pés leves
e lentos e suaves e próximos.
E ambas nos lançamos
nas grandes flores de ébano
que crescem na água cálida
das vozes clarividentes
enchendo a nossa África
com sua mágica profecia.



- Maria Manuela Margarido, no livro "

Alto como o silêncio". Lisboa: Publicações Europa-América, 1957.



AQUI
a sua biografia

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

NARA RÚBIA RIBEIRO




SEM PELE
A alma de toda a gente tem cercanias.
A minha, não tem.
É um descampado.
Não tem telhado, não tem paredes.
Muitas vezes, nem chão.
E sinto no peito as encostas
de tudo o que sangra e corrói.
Também toda a beleza me visita sem licença
e a poesia de tudo me acontece.
Mas a beleza, não raro, ela fere.
As garras de um beija-flor podem ser mortais
a uma alma sem pele.
Então, por isso, às vezes me exaspero e grito
para que o meu peito,
em desabrigo,
não seja tão violado.
Mas quando me sai o protesto,
as minhas palavras também me sangram
e morro mais um tanto por dentro.
Já não quero a palavra que afugenta a dor.
Quero o silêncio que cicatriza a ferida
e que me prepara para a dor mais forte:
a própria Vida.

– Nara Rúbia Ribeiro, do livro “Pazes” .

Biografia e vários poemas mais AQUI

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

SUSANA BUSATO








Ícaro do asfalto


se tudo ainda é pouco
se tudo ainda é lento
se tudo quanto calo raro arrebento

se tudo é partida golpe buzina
se tudo é café com pão ao meio-dia
se tudo o mais é filé com aspirina

na poça d’água do meio-fio
eu ao meio partida ouso

o impossível:

um fio de futuro na janela
entre o pôr do sol e a lua
esgarça a fina camada do dia

(e isso ainda é pouco
o mais ainda me alucina)

no vidro fosco da janela
o sorriso de Ariadne me vigia
nas suas níveas mãos a noite
e nas minhas
às minhas
expensas
apenas 
ases e copas
asas de janela
e o sol


- Susanna Busato, em "e-book". projeto Escribas do Breu. Rio Preto: SESC.


Biografia e outros poemas aqui 
 AQUI

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

GRAÇA PIRES





À entrada das palavras me detenho.


Deixo que ondule em meu olhar 

a imensa planície do passado.


Não quero falar do tempo esgotado

à míngua de tudo.


Por empenho materno adquiri

um desapego total a futilidades.

Nunca usei joias.

A minha feminilidade bastava

para me enfeitar.


A arte e a liberdade

eram as minhas pérolas

e os meus diamantes.


Lembro os momentos

encantatórios da infância,

nos fins da tarde, em que minha mãe

tocava música clássica e recitava de cor

os poetas da época, o que imprimia,

em mim, um inexplicável poder espiritual.



Graça Pires, in "Jogo sensual no chão do peito" pg 21 Editora Labirinto


Graça Pires, já  está na galeria de poetas deste blog, desde 2014. AQUI

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

DARCY FRANÇA DENÓFRIO



É do outro lado...



É do outro lado
(do mistério)
que não alcançamos
que a flor responde
em toda sua grandeza.
É lá que se contorceu
e guardou a sua história
e sangrou as suas gotas
e a solidão que (sobre)carrega.

Quem olha a flor
ou um ser desabrochado
vê um prisma (feio ou lindo)
jamais o seu lado
                               inviolado.


- Darcy França Denófrio, em "Ínvio lado". Goiânia: Editora UFG, 2000.


Biografia e outros poemas AQUI

domingo, 10 de janeiro de 2021

PAULA GLENADEL



Corcéis


controlar os corcéis
da alma,
desembestados,
com mão segura
como o lastro do navio,
seu peso em areia, em ouro:

o medo dá asa a cobra
cria monstros na sombra
viaja nos desvãos
estremece os alicerces
uiva sussurrando ruínas


- Paula Glenadel, em "Quase uma arte". São Paulo: Cosac & Naify | Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2005.


Biografia e outros poemas AQUI

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

ODETE COSTA SEMEDO



As minhas lágrimas



As lágrimas 
escapuliram 
esboçaram 
no chão do meu rosto
um fio de mágoa profunda 
queimando 
bem fundo

Nenhum grito...
nenhum gemido... 
palavra nenhuma
letra alguma
jamais traduziu 
tanto sofrer 
os olhos sentiram 
a minha gente viu
E eu?
E eu?


- Odete Semedo, no livro "No fundo do canto". Belo Horizonte: Nandyala, 2007.


Biografia AQUI

sábado, 2 de janeiro de 2021

LEOCÁDIA REGALO


FRENTE AO MAR

O teu rumor por vezes adormece
a minha inquietação latente e vaga.
Ouço-te ao longe e mesmo assim parece
que a tua voz a minha alma afaga.
Imenso pélago a banhar a praia
de barcos emborcados no areal,
não há onda tua que não me atraia
para uma imersão profunda, vertical.
Que me faça descer às profundezas
do âmago transparente do meio aquoso,
onde tudo é líquido e silencioso.
E então voltar à tona das tristezas
como alga a flutuar em mar ventoso
arrastada por desígnios que não ouso
ADIVINHAR
FRENTE AO MAR

– Leocádia Regalo, no livro “Pela Voz de Calipso”. Viseu: Palimage Editores, 1998.

Para quem quiser conhecer melhor AQUI  poderão encontrar vários poemas e uma pequena biografia da autora.

A todos, os que visitei e os que não consegui visitar, desejo um feliz 2021 com tudo o que cada um mais deseje.