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domingo, 8 de março de 2020

8 DE MARÇO - DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Porque hoje é o Dia Internacional da Mulher, pela primeira vez, trago a este blogue um post que não é de poesia. Abro esta exceção, em homenagem a todas as Celestes que sofrem na carne e na alma, toda a espécie de ignomínia, por esse mundo de Cristo. Quem me acompanha no Sexta, conhece este texto, mas neste blogue pairam vários leitores que nunca foram ao Sexta. 




                                           CELESTE


Mal o despertador tocou, Celeste saltou da cama. Lavou-se a correr e foi para a cozinha. Com gestos completamente automatizados, pegou no isqueiro e acendeu o fogão. Era noite ainda, mas Celeste trabalhava longe. Começou a fazer o almoço, para ela e para o marido. Uma lágrima soltou-se e veio cair no alguidar onde tinha as batatas para descascar. Estava cansada. Cansada daquela vida de miséria física e moral em que se encontrava. Onde tinham ficado os sonhos de menina? -Interrogou-se enquanto acabava de descascar as batatas. Onde a ilusão de um homem bonito, que se apaixonasse por ela e lhe desse uma vida de amor e felicidade?
Juntou duas postas de bacalhau às batatas e o sal, quase sem dar por isso absorta nas suas recordações.
Celeste era uma mulher bonita, sem ser nenhuma beleza estonteante. Era pequena, de pele trigueira, com aquela cor das pessoas que vivem à beira-mar. Tinha o cabelo preto e uns olhos castanhos, que muitas vezes se enchiam de lágrimas. Era uma menina ainda, com toda a inocência dos seus quinze anos quando conheceu aquele que era o seu marido.
Afonso era um homem bonito. Mais velho e mais vivido, não foi difícil apoderar-se do coraçãozinho de menina que batia no peito da Celeste.
Casaram um ano depois. Celeste já carregava no ventre um filho. Ainda menina, teve que aprender a ser mãe, e a cuidar daquele pequeno ser, que Deus lhe quisera enviar.
Depressa se apercebeu que o marido não era o príncipe com quem sonhara. Um dia, tinha o filho três meses, Afonso saiu depois do jantar, deixando-a em casa com o filho, e só regressou depois da meia-noite completamente bêbado.
Como se fora um autómato, Celeste apagou o fogão, escorreu a água às batatas e dividiu a comida pelos dois termos. Pegou as duas lancheiras, que estavam em cima do aparador, colocou um termo em cada uma, juntou uma carcaça do dia anterior, uma pêra e um garfo. Encheu uma garrafa de meio litro de tinto e colocou numa das lancheiras. Foi ao quarto e acordou o marido. Na volta pôs um pano de cozinha em cada lancheira e fechou-as.
Tirou as chaves que estavam na porta, pegou na carteira, e na lancheira, e atirou um seco até logo, saindo de seguida. Não foi ao quarto despedir-se do marido. Há muito que não trocavam um beijo carinhoso.
Enquanto se dirigia à paragem do autocarro, na cabeça fervilhavam as recordações, dos olhos soltavam-se as lágrimas.
O filho crescera e saíra de casa. Nunca se sentira lá muito bem, nem tivera uma relação de amor com o pai. E assim que se empregou, arranjou uma casita e foi morar sozinho. A sua vida ficara então mais triste, sem a presença do filho.
Já lhe ocorrera pedir o divórcio. Porém o medo e a vergonha sempre a faziam desistir da ideia.
Recordou a primeira vez que o marido lhe batera. E a desculpa com que teve que encobrir, perante a família, a vergonha e a dor que sentia tanto ou mais do que os hematomas. E os dias sem lhe falar. Dias em que ela lhe gritava o nome de manhã antes de sair de casa, e não se falavam mais.
Como agora que não se falavam desde que há oito dias ele lhe tinha voltado a bater. E tudo por causa do álcool. Mordeu os lábios para abafar um soluço ao lembrar - se daquela noite. Ela já dormia, quando Afonso chegou. E estava tão cansada que nem deu por ele se deitar. Acordou com o peso do marido em cima dela. E aquele bafo nauseabundo de bêbado. Quis empurra-lo, fugir da cama. Mas não conseguiu. Ele era muito mais forte e puxara-lhe os cabelos com violência. Virou o rosto e isso enfureceu mais " a besta". Porque Celeste não reconhecia mais o marido naquele selvagem. Quando consumados os seus intentos se virou para o lado e adormeceu, ela levantou-se e meteu-se debaixo do chuveiro. Esfregou o corpo com raiva, enquanto as lágrimas se misturavam à água. Voltou para a cama, e acomodou-se tentando não tocar no marido. Não dormiu mais. E agora enquanto esperava pelo autocarro, pensava que rumo dar à sua vida. O amor que sentira um dia por aquele homem, já sofrera muitas alterações. Foi raiva, medo, ódio, desprezo e agora era também nojo.
De repente saído do nada, veio-lhe à memória, o poema de António Gedeão.

Anda Luísa,
Luísa sobe...
Sobe que sobe,
Sobe a calçada...

Sacudiu a cabeça, ao mesmo tempo que pensava, se o poeta saberia da sua existência.
É que aquela Luísa era ela...


FIM

 Elvira Carvalho



20 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Bom dia:- Infelizmente existem tantas vidas análogas que vivem sem viver. É assim este mundo de contradições.

Votos de um dia - hoje e sempre - feliz para todas as mulheres do mundo
.
Cumprimentos domingueiros

Gracita disse...

Querida Elvira
Nós mulheres não precisamos de um dia e sim de respeito todos os dias
Mulher é obra divina da criação. É força suprema da natureza, é sublime beleza. Há mulher para tudo no mundo, mas todas carregam o mundo no coração. Parabéns pelo seu dia!
Beijinhos perfumados de poesia

Margarida Pires disse...

Querida Elvira.
As mulheres são uma obra divina.
Lindas por fora e por dentro.
E quanto aos " monstros " todos deveriam ser abandonados por elas na sua caminhada.
Feliz Dia Das Mulheres.
Daqui envio umas 💮🌼🌸🌷
Repletas de carinho e de um aroma adocicado.
Megy Maia

Manuel Veiga disse...

beijo, amiga Elvira
parabéns pelo Dia
e em especial pelo excelente texto

Roselia Bezerra disse...

Bom dia de nova semana, querida amiga Elvira!
Tenha tido um dia desperto em todos sentidos e que a cada dia seja mais feliz e abençoada!
Sucesso no tratamento sempre.
Bjm carinhoso e fraterno

Os olhares da Gracinha! disse...

Interessante sua escolha para assinalar um bela data!!! Bj

Isamar disse...

Olá Elvira,
Dia da Mulher, são todos os dias.
Excelente texto, real, actual e livre de lamechismos, porque a vida é dura de mais para algumas mulheres.

Votos de uma semana feliz.
Beijinhos

Marina Filgueira disse...

Elvira, me has emocionado y sacado unas lágrimas, solo hay que ponerse en el lugar de Celeste y salen solas.

Y lo más triste es que esta lacra está extendida por todo el mundo es el cáncer que mata a miles de mujeres cada día.
Gracias por este post, espejo que refleja muchas vidas invisibles.
Siempre es un placer leerte.

Te dejo un abrazo largo, mi inmensa gratitud y mi gran estima.
Besos y bendiciones para tus días.

O meu pensamento viaja disse...

Boa semana, Elvira e que o dia da mulher seja todos os dias, como tem que ser.
Beijo

Marta Vinhais disse...

O poema é uma homenagem a todas as Luísas, Celestes e tantas outras...
Uma vida que não é o sonho romântico que se pensa...
Obrigada pela partilha e pela visita
Beijos e abraços
Marta

Luccas Neto disse...

Achei muito interessante atualmente esta sua postagens. Parabéns!
Escolha um numero de 1 a 10

HD disse...

Respeito em todos os dias do ano... :-)
Abraço

Lua Singular disse...

Oi querida.
Que conto lindo e triste fique com vontade de entrar pela telinha e matá-lo somente com um golpe de karatê.
Quanto fui morar pertinho da capital, muitas vezes fui incomodada por homens, só que eles não sabiam que já havia 3 anos que lutava e metia mão, fosse em qualquer lugar.
Um dia um cara acredito que foi comprar presentes de Natal parara os filho e eu estava no trem, tinha ido assistir um filme em São Paulo, o trem começou a encher e ele aproveitou e estava grudadinho em mim,o espetáculo ia começar, virei com tudo dei-lhe um soco na cara que ele caiu como os presentes e levantou depressa saiu para outro vagão,nem levou os presentes, o trem andava e numa outra estação ele desceu.
Eu virava uma leoa quando mexiam comigo.kkk
Beijos no coração
Lua Singular

manuela barroso disse...

Um grande e brilhante conto que tive pena quando acabou, Elvira
Há tantas Luísas pelas calçadas , sempre a correr e morder os soluços
São testemunhos como este que farão acordar às mulheres do futuro
Parabéns . Muitos parabéns
Beijinho

Lúcia Silva Poetisa do Sertão disse...

Um conto super interessante para pensarmos sobre esta data, sobre o ser mulher, o valorizar-se e dar o grito de liberdade.
Beijos carinhosos!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Elvira

já conhecia o conto do sexta feira
mas reli-o e entendi porque o escolheu para este dia.

:(

Ana Tapadas disse...

As mulheres que conheço mais de perto...são estas!
Também eu me desdobro e tenho dias de «mundo às costas».

Adorei ler. Espero que esteja bem.

Lua Singular disse...

Oi querida Elvira
Tá tudo bem com você?
Um conto lindo que já respondi aqui
Beijos no coração
Lua Singular

vieira calado disse...

Olá, caríssima, boa noite!

Estimo que esteja bem, no meio deste temporal que abateu sobre nós todos!

Saudações poéticas!

Lua Singular disse...

Oi Elvira

A vida é feita de escolhas, não deu certo cai fora.
A mulher precisa aprender a lutar, a atirar( para assustar) que os homens morrem de medo delas.
Beijos no coração Lua Singular